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Sing Sing e a Vontade de Mudar

Foto do escritor: Maíra OliveiraMaíra Oliveira

Em meio a uma temporada de filmes que, cada um à sua maneira, abordam as opressões patriarcais sobre as mulheres – "A Garota da Agulha", "A Substância", "Anora" e até mesmo o “Ainda estou aqui” –, todos com protagonistas brancas, me parece significativo que "Sing Sing" e recente lançamento de bell hooks nos lembrem que homens negros também são vítimas desse sistema. Se por um lado o patriarcado aprisiona as mulheres em papéis definidos pelo sexualidade, estética, casamento, maternidade, solidão, culpa… para os homens negros, o destino frequentemente se materializa em duas formas: encarceramento e morte.


O filme, dirigido por Greg Kwedar, se inspira no programa "Rehabilitation Through the Arts" (RTA), que leva o teatro para dentro da prisão de Sing Sing, em Nova York. Algo que me chamou atenção foi a autenticidade do elenco. Além de Colman Domingo, que entrega uma performance impressionante - como sempre -, como John "Divine G" Whitfield, o filme escala ex-detentos que participaram do programa na vida real, como Clarence "Divine Eye" Maclin. Essa escolha adiciona camadas de realismo e dá um peso emocional diferente de outras narrativas carcerárias que já vimos no cinema.


A forma como "Sing Sing" rompe com as convenções do gênero é tocante e ao mesmo tempo, um alívio. Não há violência gráfica, sangue ou mortes em cena. Isso, por si só, já me parece um ato de subversão, uma recusa em perpetuar a imagem do homem negro sempre associado à brutalidade. Em vez disso, o filme foca na transformação, na arte como ferramenta de resistência e na capacidade desses homens de se reinventarem. E é nesse ponto que ele dialoga fortemente com bell hooks.


A coincidência entre a estreia do filme e a publicação, pela primeira vez no Brasil, do livro "A Vontade de Mudar: Homens, Masculinidade e Amor" (Ed. Elefante, 2025) me fez enxergar ainda mais conexões entre as duas obras. No livro, hooks argumenta que o patriarcado impõe aos homens, desde pequenos, uma desconexão com as emoções, ensinando-os a ver a vulnerabilidade como fraqueza. Essa masculinidade rígida e opressora acaba por destruí-los, impedindo-os de sentir amor de forma plena. "Sing Sing" me parece quase uma resposta audiovisual a essa reflexão. No teatro dentro da prisão, os personagens encontram um espaço onde podem expressar sentimentos que, fora dali, seriam vistos como sinais de fragilidade. E o mais bonito é que esse espaço é construído coletivamente, na troca e no afeto entre eles.


Um detalhe que me marcou foi a escolha do filme de substituir a palavra "negão" por "beloved". Essa troca não é apenas um detalhe de roteiro, mas um gesto que ressignifica a maneira como esses homens negros se tratam. Ainda que no contexto brasileiro possa ser lido de maneira diferente, "negão” faz parte sim de um vocabulário violento, enquanto "beloved" introduz não apenas o carinho como o reconhecimento mútuo.


AMADO

Parece um pequeno ato de resistência contra o próprio sistema que os enclausura, um lembrete de que, mesmo em um ambiente brutal, é possível criar laços que escapam às regras impostas pela masculinidade tradicional, a começar pela língua.




O que "Sing Sing" me fez pensar é que a prisão ali retratada não é apenas o espaço físico, mas uma metáfora para as restrições impostas pela própria masculinidade. Assim como as celas limitam a liberdade dos detentos, o patriarcado impõe normas que sufocam a expressão emocional dos homens. E o que o teatro faz? Quebra as 4 paredes, representando uma fuga dessas limitações, oferecendo um caminho para explorar identidades além das impostas pelo sistema. E talvez o que mais me tocou no filme tenha sido perceber que, para aqueles homens, o teatro não era só uma distração ou uma forma de "passar o tempo" – era um ato de libertação. Dentro daquele palco, podiam ser outros, experimentar novas versões de si mesmos, outros tempos, outras vidas possíveis. E se existe um caminho para a mudança, talvez ele passe por aí: pela coragem de romper com as grades invisíveis que nos aprisionam.


Sair do cinema e me deparar com o lançamento do livro de bell hooks no Brasil me pareceu um daqueles acasos significativos. Ver um filme como "Sing Sing" no mesmo momento em que uma obra como "A Vontade de Mudar" finalmente chega ao público brasileiro cria um espaço de reflexão poderoso. Ambos me lembram que a transformação é possível, mas exige que estejamos dispostos a enfrentar o desconforto de revisitar nossas próprias prisões. E talvez, só talvez, nos permitamos ser, enfim, "beloved".


 
 
 

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©2020 por Maíra Oliveira.

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